Em 1966, Emilio e Geneviève Rodrigué publicam, pela editora Paidós, de Buenos Aires, o livro ‘El Contexto del Proceso Analitico’. Trata-se de um marco importante na literatura psicanalítica, pois, nesse livro, os autores defendem que os analistas argentinos têm contribuições originais ao estudo do processo analítico, ou seja, à forma de ver o que acontece no curso de uma análise. Eles destacam dois analistas que consideram um marco de referência para o grupo argentino: Enrique Racker e Enrique Pichon Rivière. Apoiados na expressão conceitual numerosidade da relação, de Susanne Langer, eles sublinham como muito importante o número de elementos que entram na relação analista-analisante.
Para os autores, a posição reclinada do paciente, o “anonimato” do analista, a diminuição de estímulos que origina uma situação de ligeira privação sensorial e a estabilidade espaço-temporal do contrato analítico criam uma situação quase-experimental na análise, na medida em que, como em todo experimento científico, há na sessão analítica uma diminuição do número de variáveis intervenientes. O exame sistemático do que ocorre nessa situação é a única via de validação do conhecimento próprio da psicanálise. Os autores destacam que o tempo cronológico de uma sessão não é um critério de tal validação e postulam que a análise tem um tempo onírico. Eles defendem que, na sessão, se produz, então, um fenômeno de condensação e de intensificação de conteúdos, que atualiza certos ciclos básicos da biografia do paciente.
Diferenciando-se da posição de Kris e de outros analistas da escola americana, para Emilio e Geneviève uma boa sessão não é aquela na qual o próprio paciente é capaz de fazer uma síntese e tirar suas próprias conclusões, mas sim a que faz surgir um conteúdo a mais, a ser interpretado pelo analista. Consonante às idéias de Pichon-Rivière, os autores consideram que o material do paciente, a interpretação do analista e o novo material que emerge na sessão constituem três momentos visíveis de uma espiral que se desenvolve permanentemente.
Neste livro, os Rodrigué chamam a atenção para a importância do enquadre no processo analítico. Eles definem o enquadre como o conjunto de atividades não interpretativas que tem por finalidade manter a marcha ordenada do processo analítico. O enquadre é considerado por eles “correto” quando proporciona um mínimo de interferência na atividade associativa do paciente e interpretativa do analista. A interação associação-interpretação constitui, portanto, o cerne da relação analítica.
Segundo Emilio e Geneviève, a regularidade e o pagamento dos honorários, a obediência e a mudança de horário, a situação de começo e de final de sessão não fazem parte da relação analítica propriamente dita, mas de uma relação perianalítica que se mantém relativamente constante. Ou seja, “não são o jogo, mas as regras do jogo”. Um índice de que o tratamento marcha adequadamente é dado quando o paciente reage com grande sensibilidade a pequenas mudanças que se produzem no enquadre.
Os autores consideram a interpretação, então, como o instrumento principal de intervenção do psicanalista. No que diz respeito à análise de criança, revelam que o analista adota, inconscientemente, um outro estado de ânimo e de disposição perceptiva, a que denominam de atenção lúdica. Esse tipo de atenção requer um estado mais ativo do analista, que lhe possibilita rastrear as diferentes áreas de expressividade da criança, criando uma disposição para jogar. Emilio e Geneviève ressaltam que a atenção, seja ela flutuante (na análise do adulto) ou lúdica (na análise de criança) é parte constituinte da interpretação, já que o que se diz ao paciente está determinado pelo modo como o analista reúne o material escutado. Por isso, à atenção lúdica eles fazem corresponder uma outra modalidade de intervenção, que chamam de interpretação lúdica.
Emilio e Geneviève salientam que tal tipo de interpretação é constituído de dois tempos superpostos. No primeiro tempo, o analista imita o jogo da criança e, no segundo, transmite-lhe o sentido do jogo, fazendo uso dos meios não-verbais que a criança empregou. A interpretação funciona, então, como um possível estímulo para o próximo emergente do jogo. Os autores destacam que pouco se tem investigado sobre as diferenças entre a expressão verbal do adulto e a não-verbal da criança. Apesar das dessemelhanças entre a análise de criança e a análise de adulto, o trabalho com as crianças exerce influências significativas no trabalho com os adultos, sobretudo no que diz respeito à significação extra-verbal do que o paciente expressa. Partindo da noção de contra-identificação projetiva de Grinberg, eles acrescentam que a interpretação mutativa é aquela em que se inverte o processo de indução projetiva, fazendo com que o paciente experimente aqueles aspectos seus que nega e que projeta em seu analista.
Este recorte do conteúdo do livro ‘El Contexto del Proceso Analitico’ revela que o trabalho de Emilio e Geneviève faz jus ao seu propósito de mostrar as contribuições que consideram originais ao estudo do processo analítico, na medida em que eles utilizam expressões conceituais inovadoras, que traduzem a forma pela qual o grupo argentino lida com os diferentes aspectos deste processo, na década de 60. As noções de enquadre, tempo onírico, atenção e interpretação lúdica são algumas dessas inovações que, dentre outras, podem ser melhor investigadas a partir da leitura do próprio texto. O livro, mais do que relato histórico, nos faz repensar as questões concernentes ao processo analítico e nos faz relançar a busca de sinais de uma nova práxis.
• Gigante pela própria natureza
Andrea Hollnagel Araújo
Em Gigante pela própria natureza, texto que considera como um grande conto de amor no outono da vida, Emilio Rodrigué revela aspectos da sua posição singular no contexto social e cultural da Bahia. Como fez antes com questões como a sabedoria em Lição de Ondina, e a erótica da ética em Ondina Supertramp, o amor e a religião são abordados aqui tanto pelo viés da fascinação, da qual Rodrigué não se abstém, como por um caminho a-mais que lhe permite sair da posição de possuído e avançar na direção de novas significações. Tendo como interlocutor o irmão Jack, seu herói na infância, enriquece o corpo do texto com uma dimensão atemporal onde há lugar para a associação livre e em que, como é bem do seu estilo, os comentários instigam o leitor a uma participação ativa.
Nas primeiras páginas do livro, um glossário de palavras regionais e iorubanas introduz à trilha que o autor propõe levando o leitor a percorrer, no limite entre ficção e realidade a riqueza cultural que fez de Salvador a capital do sincretismo, não apenas religioso. Personagens como as filhas de santo podem, por exemplo, aparecer folheando tranquilamente a revista Casa e Jardim ao som dos Beatles, passeando no Shopping Barra ou comendo moqueca tomando Liebfraumilch. O autor, criando um ritmo de alternância entre os fatos singelos de um encontro de enamorados, as lembranças vividas de outros tempos e a história do povo nagô, seus Orixás e seus rituais religiosos, leva o leitor ao umbral onde a sugestão recebe o questionamento da fé. A surpresa acontece quando em certos momentos um fato que só poderia ser ficcional aparece no contexto cotidiano, ou quando no contexto da ficção desponta mais realidade do que seria de se esperar. Em diversas passagens a ligação com o candomblé promove acontecimentos diante dos quais surge a pergunta: afinal, ele crê? Rodrigué responde: “Oxalá um dia eu seja um homem de fé”
O livro conta, em paralelo, a história do amor com Gracinha de Oxum, declarada a mulher da sua vida com a qual se casou e viveu por vários anos, e a história do povo Nagô na Bahia cujo fio ele puxa desde a chegada dos navios negreiros ao Brasil, passando pela escravidão, pela saga dos quilombos, pelo heroísmo de Ganga-Zumba e Zumbi dos Palmares, até a constituição dos terreiros de candomblé sob o matriarcado das mães de santo Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Ondina e Mãe Stella como perpetuadoras da tradição da cultural e religiosa do candomblé.
À medida que o texto avança, as duas vertentes se fundem no espaço do Axé Opô Afonjá, terreiro dos mais tradicionais da Bahia. O sonho oracular com uma pedra introduz o mistério que paira à sua volta desde o primeiro encontro com Mestre Didi, sumo sacerdote do culto dos mortos, em Buenos Aires. A questão com o sentimento religioso retorna na narrativa de inúmeras situações vividas, fantasiadas e, quiçá, alucinadas, a partir das várias ocasiões em que esteve hospedado no terreiro; entre outras, febres e fleimões que chegam e se vão misteriosamente, animais que caem mortos no chão como que por vontade própria, um galo que parece ser a própria encarnação de Exu produzem o contexto no qual Rodrigué acaba por se confessar sugestionável por natureza.
Depois de participar de inúmeras cerimônias e festas, sabendo-se homem de Xangô, Rodrigué testemunhou manifestações e teve direito à sua própria experiência extática. O texto dá testemunho do mergulho nesse mundo de religião e revela o saber desse analista de formação kleiniana, que sacrifica a ortodoxia em favor da plasticidade sem com isso perder a coerência. A mitologia é perpassada pela psicanálise. Ao final, não sem ter deixado no texto as chaves para decifração de tal enigma, o autor narra a sua polêmica confirmação como Obá de Xangô junto a Mãe Stella no Axé Opô Afonjá.
Por outro lado, também adernando em direção à ficção, a história de Tristão e Isolda é convocada para balizar, ponto a ponto, a sua própria história de amor que, nascida na fantasia infantil da princesa africana, permanece atravessada por uma posição sublimatória que desde o início a caracteriza. Como filha de santo, Graça, como as Damas cantadas outrora pelos trovadores, mantém sua parcela inacessível, sendo envolvida num amor que se diz casto por natureza. As cinco caras do amor, Amor Cortês, Amor Herético, Amor Platônico, Amor Lacânico, Amor Lacônico, assim como os cinco nomes de Graça, Maria das Graças, Gracinha de Oxum, Oxum-Adé, Mãe do século XXI e Princesa Africana são cantados quando o autor se vê privado da mulher por ocasião de sua reclusão por motivos religiosos.
Garantindo a manutenção de um espaço privilegiado para o mistério, religião e amor constituem, junto com a política, o tecido a partir do qual Rodrigué analisa o curto-circuito que expõe o assujeitamento que se dá em cada um desses três campos e que ele chama de possessão. A possessão, fio que percorre o texto de ponta a ponta, une e ao mesmo tempo separa, uma vez que constitui a alienação explícita, tesoura narcísica a ser quebrada. Enfocando a questão a partir de vários ângulos numa pesquisa que vai de Nina Rodrigues a Sheila Walker, passando por Arthur Ramos, Ravenkrof, Bárbara Brown, João Batista Rios e Marcio Goldmann, o autor chega à idéia de que o possesso é um ser evidentemente unitário e, apesar disso, de modo paradoxal, ele é mais-que-um.
Rodrigué é enfático ao afirmar existirem apenas duas formas de sair da possessão: a explicitação extática ou a cura psicanalítica. A partir daí é possível aceder a essa posição outra que ele diz ser a do psicanalista, que é a de ser herege pela própria natureza, uma vez que partimos de um dualismo que desemboca em outra coisa mais além do Princípio do Prazer.
Contrariando, portanto, o amor narcísico e a submissão religiosa por serem fundamentalmente alienantes, amor e religião, imbricados como estão nesse livro, são chamados na sua aparição herética. Para tal, Rodrigué recupera com Denis de Rougemont a relação entre a cena do amor cortês e da doutrina Cátara, a chamada igreja do amor, que difundiram ao mesmo tempo, em meados do século XII, pela região do Languedoc, Pitou, Catalunha, Lombardia, respectivamente, uma forma de amor casto pela Dama que, sendo esta sempre objeto inalcançável, era sublimado gerando uma infinidade de poemas e exaltações verbais e musicais, e uma forma de amor a Deus que, suspensa num dualismo, Satanás de um lado e o Altíssimo do outro, se alimenta na perspectiva de uma solução escatológica. Assim como Jesus Cristo, para os cátaros, não encarna, se manifesta, ou seja, não faz Um, o amor cortês, de saída impossível, desemboca em algo mais-que-um. Também o Gigante não nos oferece uma solução, não nos permite encontrar um sentido unívoco. A contradição entre a afirmação de ser um cara descrente pela própria natureza e a confirmação como Obá de Xangô não se resolvem, antes abrem à possibilidade de, como é aqui sugerido, inventar a partir da vivência explícita do mais-que-um, a partir de uma mitologia existente, coletiva, uma mitologia própria efetuando, na saída da possessão, uma mutação que leva à identidade. É certo, porém, que ao final no deparamos com um limite. A Kesila, o tabu que suspende a escritura desse livro pode bem ilustrar que no fim restará sempre uma palavra que não pode ser dita.
Fecha-se o livro mas não a questão.
• O paciente das 50.000 horas
Sergio Augusto Franco Fernandes
Para aqueles mais desinformados, que desconhecem a vida e a obra deste que foi um controvertido personagem da história da psicanálise, vale lembrar, dentre diversos acontecimentos que marcaram o seu percurso, que ele ocupou o cargo de presidente da Associação Psicanalítica Argentina (APA) e da Federação Argentina de Psiquiatria (FAP), tendo rejeitado nada menos que a vice-presidência da poderosa International Psychoanalytical Association (IPA). E é justamente aí, na rejeição de um cargo tão cobiçado por psicanalistas de todo o mundo, que podemos perceber um traço característico da sua personalidade tão marcante. Estar na “cúpula”, para Emilio, talvez fosse um objetivo, mas, certamente, permanecer nela, não o era. Para ele, esse triunfo não seria tão retumbante assim, já que estaria em meio a uma elite de “burocratas”, coisa que ele passou a abolir e que, de alguma forma, justifica a escrita do livro em questão. Não esqueçamos que ele foi também um dos responsáveis pela formação de uma geração de eminentes psicanalistas na Bahia.
O livro já começa diferente, esgueirando-se dos convencionalismos, com um prólogo “multipessoal” escrito pelos amigos e não menos personagens históricos da psicanálise, quais sejam, Armando Bauleo, Hernán Kesselman e Eduardo Pavlovsky, além de notas de rodapé de Marie Langer e um epílogo de Martha Berlin. Antes, porém, do prólogo, Emilio escreveu uma carta onde faz referência às várias maneiras de se “cozinhar” um epistemólogo – diga-se, de passagem, que ele tinha uma questão mal resolvida com Oscar Masotta e evitava comentar sobre a mesma. Na verdade, essa estória de cozinhar um epistemólogo não passava de um engodo para que seu livro fosse lido. Livro esse que deve ser lido como um manifesto, onde Emilio fincou a sua bandeira psíquica.
O título do livro diz respeito à totalidade do tempo do seu trabalho junto ao divã, ao longo de 25 anos de atendimento “padrão”, de psicanálise ortodoxa. Esse texto marca o fim de uma “longa colonização inglesa”, como diria o próprio Emilio, servindo imaginariamente como uma certidão de independência. O livro é organizado em duas partes, onde, na primeira, são relatados os seus 25 anos de experiência como analista da APA, apresentando o caso clínico de um paciente em análise didática. Já na segunda parte, percebemos um reflexo do seu trabalho mais atualizado, onde ele aglutina e busca teorizar o psicodrama, a bioenergética e a gestalt junto ao corpus psicanalítico. O que, então, aparece claramente dividindo essas duas partes, é o movimento Plataforma e a sua razão de ser: a ruptura com a Associação Psicanalítica Internacional.
Diante de uma vasta experiência clínica, Emilio acaba por encontrar o que fazer com ela: resolve considerá-la uma ficção e constrói algo que passa a funcionar como um reflexo da sua clínica. Traçou, então, o perfil do que ele chamou de um “super-paciente”, que pudesse lhe propiciar a possibilidade de reunir, a partir dele (do super-paciente das 50.000 horas), a totalidade dos seus casos clínicos ao longo desses 25 anos. Para Emilio, desiludido, a psicanálise havia envelhecido, apresentando, então, um paradoxo: ao mesmo tempo em que ganhara respeitabilidade, havia perdido algo muito importante, a saber, o caráter, a meta e um certo exagero revolucionário. Para nosso autor, o problema básico residiria na própria estrutura da psicanálise.
Enfim, podemos considerar esse livro como sendo um documento sobre a auto-estima de Emilio. Sua alegria, a partir das novas experiências, foi constatar que não mais estava repetindo o vício verticalista dos centros de formação psicanalítica. Parafraseando o próprio autor, fica, pois, uma sugestão para os interessados: leiam esse livro pelo que Emilio foi, ou seja, alguém que desejou vender uma nova proposição de vida, fundamentada numa vivência ímpar. Quem conheceu Emilio sabe que é muita história para um homem apenas. Ficam as saudades.
Doutor em Filosofia (Unicamp), membro do Colégio de Psicanálise da Bahia, membro do GT Filosofia e Psicanálise (Anpof), professor adjunto do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidiade Federal do Recôncavo da Bahia.
• O último Laboratório
Urania Tourinho
O último laboratório, momento da psicanálise de um psicanalista. Aqui, a questão do finalizar um processo, não do paciente mas do analista. Final de análise vivido entre o impasse dos limites: o desnudar-se do analista, a loucura do paciente. Aqui a última jogada de Emilio Rodrigué na busca de sua verdade psicanalítica: “creio que chegamos a uma situação limite, neste sentido missão cumprida”. O espaço escolhido é o laboratório terapêutico, ou espaço de “anti-análise” (o laboratório é uma festa, festa de transgressões e não abstinências). A companheira NORMA, a que é evocada mas que se fez calar. O final ESPERANÇA ou a crença na continuidade. O psicanalista não fala, se deixa falar e é através de um narrador que tudo é exposto a julgamento, julgamento do próprio psicanalista que sentencia: “uma idéia que não deixa de ser inteligente mas que possivelmente foi errada”. Aqui o dilema entre a transgressão e a norma. Emilio Rodrigué expõe, expõe um momento de revisão de sua trajetória pela psicanálise e enfatiza o seu conflito maior entre a criatividade e a obediência, e sua profunda ambivalência frente ao poder. A co-autoria é um sintoma e, portanto, se repete. Eu diria que Norma teria que ser a sua co-autora nesta aventura que por outro ângulo seria a aventura de Norma. Seguramente, para Norma Ferro, esta não é uma cena final, terapeuta que por não situar-se em tempo de revisão disputa sua área de poder. Assim que, “O Último Laboratório”, mais que uma narrativa de uma perigosa experiência grupal, nos revela os meandros do desejo do analista na busca de cumprir sua missão.
• Uma cronotopia de Emílio Rodrigué
Véra Motta
Lançado no dia 16 de novembro, no Salão de Festas do Ondina Apart Hotel, onde vive o biografado – sim, pois se trata, aqui, de uma biografia, no sentido em que a postulamos, um roteiro de visitação à obra do autor – Emilio Rodrigué, caçador de labirintos1 dá partida a uma coleção, Memorar, organizada pela psicanalista e membro fundador do Colégio de Psicanálise da Bahia, Urania Tourinho Peres.
O biografado, Emilio Rodrigué, assina o Prólogo, ocasião de lançar a pergunta inaugural de todo humano, e reminiscência de um dos muitos laboratórios de que participou: “Quem sou eu?”. A resposta, no estilo bate-pronto de Emilio, vem a seguir: “Eu sou um caçador de labirintos”, expressão com que se referira a Freud, em um dos seus inúmeros artigos psicanalíticos.
Os interrogantes na vida e na obra de Emilio se acumulam. Em sua experiência londrina, nos anos 50, Rodrigué foi aparteado por ninguém menos que Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), médico e psicanalista inglês, durante os seminários da International Association of Psychoanalysis-IPA, em circunstâncias que se esclarecem na entrevista levada a cabo pela organizadora da edição, Urania Tourinho Peres.
Em uma dessas reuniões científicas de que participava, como candidato à IPA, Rodrigué, contrariando os dispositivos institucionais que o impediam de apresentar caso clínico, comete uma transgressão, escutando, em retorno, do próprio Bion, a frase: “Para quê?”. A resposta, que não lhe ocorreu à época, aparece em seguida na entrevista, e tem o sabor de uma enunciação que, embora não tenha chegado ao seu destino, realiza, por assim dizer, o entreato da aventura humana: “para provocar-lhe inveja”.
A coletânea se compõe de artigos de diferentes autores, membros da instituição responsável pela edição, além de uma memorável entrevista do biografado, ocasião de rever os eventos passados sob o modo inexcedível da interlocução com um outro. Desta feita, trata-se de um interlocutor privilegiado, que não se exime de perguntar ao entrevistado se ainda recorda algo de sua própria análise, encontrando, como resposta, a afirmação de um fenômeno e de um novo conceito, a amnésia transferencial.
Um dos muitos méritos da coletânea é a possibilidade de realizar uma espécie de cronotopia da vida e da obra de Emilio Rodrigué, no sentido em que Mikhail Bakhtin o aplica à crítica literária. Em Emilio Rodrigué, caçador de labirintos, pode-se afirmar que o trabalho de reunir as publicações do autor, fotos de diferentes épocas, procedendo à análise de obras e artigos produzidos ao longo de sua existência como escritor de múltiplas faces, além de avaliar sua inserção política e religiosa, constitui um esforço de interligar, num todo compreensivo e concreto, os indícios espaciais e temporais dispersos.
Num artigo intitulado “Para quê?”, Urania Tourinho Peres faz um recorrido rodrigueano, pontuando sítios, pessoas, momentos da vida e da obra do autor, desde sua infância, qualificada de “dourada”, sua adolescência enganosa, até encontrar-se com a psicanálise, sob a mão segura do pai. Jovem adulto, aberto ao novo, Rodrigué encontra Londres, lugar do primeiro exílio voluntário, quando convive com Melanie Klein – sua supervisora, e cuja neta esteve aos cuidados analíticos de Rodrigué –, Paula Heimann – sua segunda analista, Ernest Jones, Winnicott, Balint, Glover, Joan Rivière, James Strachey, Hana Segall e até mesmo Anna Freud, entre tantos outros.
Entre os sítios institucionais freqüentados por Rodrigué, além da IPA e da sua contraparte argentina, a APA, podemos localizar a Associação Psicanalítica de Grupos, de onde surgiu o livro escrito em parceria com Leon Grinberg e Marie Langer – Psicoterapia de Grupo –, ainda um clássico no assunto. Um outro relaciona-se à sua experiência nos Estados Unidos, no final dos anos 50, na clínica Austen Riggs, comunidade terapêutica parcialmente financiada pela Ford Foundation e dirigida pelos eminentes Robert Knight, Erik Erikson e David Rapaport.
Se a experiência em Londres abre para Rodrigué o mundo do infans, Austen Riggs lhe franqueia as portas da psicose. Biografia de uma comunidade terapêutica é o seu primeiro livro solo. O retorno à terra natal é a realização de uma promessa: o menino feliz da infância torna-se presidente da APA e mais tarde da Federação Argentina de Psiquiatras-FAP.
Um vetor na cronotopia de Rodrigué pode ser demarcado, seguramente, pela combinação espaço-temporal de propriedades como a escrita e o amor. Buenos Aires, nos anos 60, é o sítio onde Rodrigué reencontra a companheira anelada há muito, Geneviève, e com quem escreve El contexto del proceso analítico. Anos mais tarde, será a vez de El Antiyo-yo, em parceria com sua mulher, a psicodramatista Martha Berlin, e de El paciente de las 50.000 horas, deslocando-se o cenário para a Bahia.
A trajetória de Rodrigué encontra muitos momentos de ruptura, um dos quais resultou na formação do Grupo Plataforma Argentino, que agregava os amigos Fernando Ulloa, Eduardo Pavlovsky e Armando Bauleo, entre outros. O movimento Plataforma era o corolário das demandas de um grupo de psicanalistas europeus, jovens, questionadores da didática e da hierarquia no espaço institucional fechado da IPA, constituindo um reflexo dos protestos que haviam sacudido o mundo ocidental no final dos anos 60.
A diáspora que se segue ao desligamento das sociedades psicanalíticas fez aportar o nosso biografado em terras de Bahia, cenário para novas incursões – os laboratórios terapêuticos, de que toda uma geração baiana haverá de guardar na memória. Da ortodoxia das instituições psicanalíticas rigorosas, conhece Rodrigué a heterodoxia dos laboratórios, germe de sua futura e mais nova invenção – o Laboratório Individual de Uma Única Sessão-LIUS, mantendo-se, no intervalo, sua posição de analista.
Um olhar apurado sobre a escrita de Rodrigué nos anos 50 e 60 é objeto da consideração de Maria Thereza Ávila Dantas Coelho, ao analisar três artigos publicados no International Journal of Psychoanalysis, bem como dois capítulos do livro El contexto del proceso analítico, já mencionado. Em relação ao artigo “Considerações sobre o Simbolismo”, a autora aponta a influência filosófica de Susanne Langer, ressaltando, no livro El contexto ... o pensamento de Enrique Racker e Pichon Riviére, como principais influências.
Cabe destacar, dos comentários preciosos da autora do artigo, a referência ao pensamento de Rodrigué acerca do tempo na análise: não cronológico, como queria Freud, sequer lógico, como o exige Lacan, mas onírico, na medida em que se produz aí um fenômeno de condensação e de intensificação de conteúdos que atualizam, por assim dizer, certos ciclos básicos da biografia do paciente.
Para comemorar, em 1952, os 70 anos de Melanie Klein, Rodrigué foi convocado a escrever artigo que integrasse a coletânea Novas tendências na psicanálise, comparecendo com “Análise de um esquizofrênico, com mutismo, de três anos de idade”, ou, mais simplesmente, o caso Raul. Regina Sarmento, a autora do artigo que examina a contribuição de Rodrigué à análise de crianças autistas, verifica a atualidade do trabalho – um clássico, além das influências teóricas de Leo Kanner no estabelecimento desta nosologia, o Autismo Infantil Precoce.
Leitora atenta, Griselda Teixeira de Castro Pêpe passeia o seu olhar pela extensa lista de publicações de Emilio Rodrigué, desde o livro de contos Plenipotencia (1966), a Heroína (1969), novela que valeu um filme, passando por A lição de Ondina (1983), manual psicanalítico de sabedoria (sic), O último laboratório (1985), escrito com Norma Ferro, Um sonho de final de análise (1986), em parceria com Syra Tahin Lopes, Ondina Supertramp (1987), experiência do hedonismo rodrigueano, Gigante pela própria natureza (1991), obra psicanalítica confessional, El libro de las separaciones (2000), outro da série de confissões, até o inédito El libro de los encuentros.
Em 1995, Rodrigué conclui a biografia de Sigmund Freud – Sigmund Freud, O Século da Psicanálise, 1895-1995, em três volumes, encerrando, como revela o autor, sua experiência com o mestre fundador, como acontece com um bom final de análise. Como assinala a autora do artigo, o estilo de Rodrigué combina, nos limites do gênero, a ficção e a realidade. Ou, em outras palavras, Emilio parece ficcionar a realidade e realizar a ficção, como só a um escritor criativo é possível.
“Alguns aspectos da relação de Emilio Rodrigué com a política”, de autoria de Sergio Augusto Franco Fernandes, revisita alguns dos lugares e momentos entrevistos nos artigos anteriores, com ênfase nos aspectos da filiação à causa analítica e à causa política, em especial os movimentos peronista e comunista. Com relação a este último, o autor rememora aquilo que ele designa de “anedota búlgara”: o cenário é Sofia, o ano, 1970; uma delegação de psiquiatras argentinos, comunistas e simpatizantes, em regime etílico, encontra ocasião de filiar Rodrigué. Três horas depois, ficha de filiação e filiado atiram-se ao Mar Negro.
Ao indagar a fé em Rodrigué, Andréa Hollnagel Araújo propõe uma reflexão ambiciosa sobre as dimensões da experiência do biografado em seu curto-circuito por uma das possessões – política, religião e amor –, como as denomina Rodrigué em uma de suas obras confessionais. Em toda a trajetória rodrigueana, parece impossível encontrar aderência a qualquer objeto, sentencia o autor do artigo, para concluir com uma frase do biografado, que é uma promessa e ao mesmo tempo um hino: “Oxalá, amanhã, eu seja um homem de fé!”.
“Flashes de um olhar sobre a história”, de autoria de Darilda Guimarães Miranda, encerra o recorrido sobre Rodrigué, retomando os tempos idos da Clínica de Atendimento Psicanalítico-CLAPP, em Salvador, passando pelos inúmeros encontros em Cachoeira, durante as Jornadas de História da Psicanálise do Colégio de Psicanálise da Bahia, para reencontrar o Emilio de Ondina.
Certamente, o que vemos hoje não mais é o Emilio das Lições ..., mas aquele que nos permite, com sua presença viva e inquietante, penetrar nos labirintos da memória, e postular, para responder à pergunta “Quem sou eu?”, que outrem o faça, sabendo de antemão que ele sabe bem mais de mim do que eu mesmo.
Artigo publicado em Pulsional Revista de Psicanálise, ano XVIII, n. 182, junho de 2005, p.138-141.
Em Questões de Literatura e de Estética; a Teoria do Romance (São Paulo: UNESP, 1998), Bakhtin toma emprestado das ciências matemáticas o termo cronotopo para aplicá-lo à crítica literária, entendendo-o como uma categoria em que as relações temporais e espaciais se interligam e artisticamente se assimilam em literatura. Patrice Pavis igualmente a utiliza em A análise dos espetáculos (São Paulo: Perspectiva, 2003).
Véra Motta é psicanalista, professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. E-mail: veramotta@atarde.com.br
"Sou um analista da quarta ou da quinta geração. Abraham foi meu avô. Conheci um Jones um tanto irônico, polêmico na discussão de trabalhos de Bion e Balint. Fui vizinho de Mrs. Klein por mais de dois anos. Participei de seminários com Rickman. Glover e Anna Freud, e mais tarde troquei cartas com Winnicott. Tomei chá com Alix Strachey, servido por Mrs. Lindon, a bibliotecária do Instituto Britânico de Psicanálise. Do outro lado do Atlântico, na Costa da ego psychology, trabalhei, por mais de três anos na mesma clínica que David Rappaport e Erik Erikson. Possuo uma poderosa transferência com o passado, mas sou, ao mesmo tempo, um franco-atirador, um arqueiro free-lance, alguém que foi um jovem analista do tempo velho e que agora é um velho analista do tempo novo. Tenho um miradouro panorâmico do percurso do movimento psicanalítico. Permaneci um longo período na Associação Psicanalítica Internacional – IPA para logo ser agente de câmbio com esse furacão manso que foi o movimento Plataforma. Sou o analista das 100.000 horas."